A aprendizagem social ou situada (ou ainda “cognição situada”), assim como a ideia de “comunidades de prática”, tem muitos aspectos e origens em comum com as teorias previamente estudadas aqui (sociointeracionismo e conceituação na ação).
No entanto, há nesta abordagem, que possui várias ramificações teóricas, outros olhares sobre o fator social e cultural da aprendizagem que traz contribuições importantes à reflexão sobre aprendizagem na Educação Profissional.
A aprendizagem escolar é antes de mais nada um processo de “enculturação”, ou seja, de participação e de “entrada” em determinadas comunidades, que possuem práticas sociais às quais os aprendizes irão se integrar, com ritmos e formas diferentes uns dos outros, mas segundo princípios sociais de aprendizagem.
Entre tais princípios, está, vale repetir, o de que a aprendizagem deve ocorrer em contextos pertinentes para se tornar efetiva e relevante para o aprendiz. Em tais contextos, separa-se menos o “saber” do “fazer”. Isso se traduz na busca de um ensino que promova práticas educativas mais autênticas, com maior relevância cultural e social.
Ou seja, é preciso recontextualizar os saberes em situações em que estes saberes tinham sentido, em que os atores tinham objetivos, problemas a resolver, agindo segundo determinados padrões ou diante de incertezas, em meio a relações de poder, etc. Cescon lembra que:
“Hendricks (2001) propõe que, partindo da visão situada, os educandos deveriam aprender envolvendo-se no mesmo tipo de atividades que os especialistas enfrentam em diferentes campos do conhecimento. Paradoxalmente, na cultura escolarizada com frequência procura-se criar práticas ou atividades científico-sociais semelhantes às realizadas pelos especialistas e pretende-se que os alunos pensem ou atuem como matemáticos, biólogos, historiadores, etc. Entretanto, o ensino não acontece em contextos significativos, não se enfrenta problemas nem situações reais, nem se promove a reflexão na ação, nem se ensina estratégias adaptativas e extrapoláveis. O conhecimento do especialista, diferentemente do possuído pelo novato, não difere somente na quantidade ou profundidade da informação, mas em sua qualidade, já que é um conhecimento profissional dinâmico, autorregulado, reflexivo e estratégico”. (CESCON, 2016, p. 39)
Oliveira e Santos (2011, p. 43) lembram então que “três aspectos são imprescindíveis para que se entenda a aprendizagem ou cognição como sendo situada:
- porque remete a pensamentos e ações das pessoas que acontecem em um espaço, em um tempo;
- porque diz respeito a práticas sociais nas quais estão em jogo a participação e o envolvimento de outras pessoas;
- porque é sempre atrelada a contextos sociais, marcadamente reconhecidos como fontes de significados e de significações”.
Uma das mais interessantes abordagens de aprendizagem social para a Educação Profissional é a das Comunidades de Prática. Esta expressão foi cunhada na década de 1990 por Jean Lave e Etienne Wenger (1991), quando estudaram grupos de alfaiates do leste africano (e depois em vários outros âmbitos profissionais).
Perceberam que havia um movimento de participação periférica dos aprendizes de alfaiate que ia se legitimando por meio do seu engajamento em diversas tarefas do ofício e que a aprendizagem ocorria não apenas na relação mestre-aprendiz, mas informalmente entre diversos dos trabalhadores envolvidos nas tarefas.
Este olhar social para a aprendizagem alavancou a crença de que, para o aprendiz não ser tratado como um receptor passivo de um conhecimento separado do seu mundo de origem, é considerado fundamental que ele se engaje em uma comunidade de prática, que possa agir “sobre as situações e com as situações acarretando recíproca mudança” (OLIVEIRA; SANTOS, 2011, p. 43). Este engajamento em situações específicas é condição para que qualquer generalização do saber faça sentido. Afinal, “saber uma regra geral de modo algum assegura a capacidade de generalizá-la em situações específicas nas quais a mesma seja relevante” (LAVE; WENGER, 1991, p. 34). Para Lave e Wenger, a capacidade de generalização do conhecimento “reside no poder para renegociar o significado do passado e do futuro quando da construção do significado das circunstâncias presentes” (LAVE e WENGER, 1991, p. 34).
Em 2002, Etienne Wenger se junta a McDermott e Snyder para formular as condições que permitem cultivar comunidades de prática. Algumas destas formulações são muito inspiradoras para o contexto da formação de trabalhadores.
Para começar, identificam uma Comunidade de Prática (CoP) como sendo um “grupo de pessoas que compartilham preocupações, um conjunto de problemas ou uma paixão sobre um assunto e que aprofundam seus conhecimentos e expertises nessa área ao interagirem de maneira contínua” (WENGER, MCDERMOTT; SNYDER, 2002, p. 4). Não é uma comunidade idealizada: há conflitos, relações de poder, divergências nos grupos. Contudo, há nelas uma estrutura básica que faz com que CoPs nasçam, se desenvolvam, se transformem ou, eventualmente, desapareçam. Esta estrutura é composta de três elementos relacionados:
- um domínio, ou seja, o corpo de conhecimento, que gera um senso de responsabilidade, define o compromisso (não são um grupo de amigos reunidos apenas), a identidade do grupo, a sua motivação em participar;
- a comunidade, interessada no domínio, interage, com base em relações de respeito e confiança, sem o que dificilmente compartilhariam suas experiências, dúvidas, anseios. A comunidade é a trama social da aprendizagem, enriquecida pelas contribuições diversificadas dos indivíduos, os quais, por sua vez, compartilham uma visão geral, um senso de pertencimento. Esta riqueza de visões individuais e compromisso mútuo é um campo fértil para a aprendizagem e a criatividade;
- as práticas referem-se aos modos de agir da comunidade no domínio que a une e pode incluir experiências, ferramentas, histórias, modelos, manuais, entre outros – abrangendo aspectos tácitos e explícitos. Esse conhecimento não é estático, ele evolui ao longo do tempo e a medida que novas situações e novos conhecimentos são apresentados, a prática também evolui. Ela é um currículo vivo e uma espécie de mini cultura que une a CP, incorporando comportamentos e posturas éticas, por exemplo.
Há hoje muitas CoPs virtuais além daquelas que se formam por meio de atividades presenciais. Se os membros de uma CoP buscam desenvolver ou aprimorar seus conhecimentos, é fundamental lembrar que se trata de “criar uma prática compartilhada transcende o caráter interpessoal da rede de relacionamentos informais e se manifesta nas questões de pertencimento, identidade e comportamento” (CASTANHEIRA E COSTA, ALLAIN, 2020).
Em suma, as CoPs se formam nas intensas trocas entre trabalhadores engajados mutuamente em um empreendimento conjunto (há uma infinidade de exemplos, basta você fechar os olhos e encontrará algum) com um repertório compartilhado de práticas, que “rotinas, palavras, ferramentas, modos de fazer coisas, histórias, gestos, símbolos, gêneros, ações ou conceitos que a comunidade produziu ou adotou no decorrer de sua existência e que se tornou parte de sua prática” (CALVO, 2017, p. 194).
Isso é muito interessante para pensar a aprendizagem (e a formação) profissional, pois raras vezes pensamos que estamos preparando os estudantes para entrarem em Comunidades de Práticas profissionais. Como professores, inclusive, tendemos a trabalhar muito isoladamente e a termos poucas trocas (embora nem sempre as melhores condições para isso, vale dizer).
- Aprender é, no fundo, construir e transformar identidades. A aprendizagem tem a ver com o que você está se tornando, diz Wenger. Aprender uma profissão é transformar profundamente a sua identidade, é um tornar-se. Este aprender como transformação identitária acontece: na experiência de si mesmo, uma experiência negociada com os outros, na trajetória de aprendizado, no sentir-se parte de algo (pertencimento definido globalmente em relação à CoP, mas experimentado localmente, nas práticas). Identidade aqui não é restrita. Podemos ter múltiplos pertencimentos e integrar diversas CoPs…;
- Para promover esta aprendizagem, deve-se criar para o aprendiz oportunidades de engajamento na prática (aquele rico conjunto de atividades compartilhadas de que falamos acima);
- A comunidade torna-se um “currículo vivo” para o aprendiz (e pode ser também para o professor).
Primeiro, utilizaremos as belas palavras de Lave e Wenger: “Uma bela consequência é que: “Uma comunidade de prática é uma condição intrínseca para a existência de conhecimento, também porque ela fornece o apoio interpretativo necessário para fazer sentido de seu legado (…)” (WENGER; LAVE, 1991, p. 34).
Segundo, como diz Calvo, podemos com estas considerações enfrentar o que ele chama de “obstáculos epistemológicos” que são comuns no ensino:
- Concepção de aprendizagem como algo que acontece eminentemente a partir de mecanismos explícitos e formais;
- Concepção do conhecimento como patrimônio individual, gerador de prestígio e poder” (p. 205).